Mais uma amiga do grupo Semear que escreve lindamente! Um texto preciso sobre o nosso cotidiano e o que fazemos do nosso tempo e dos “barulhos” que produzimos.
É um pássaro? Um avião? Uma britadeira? Buzina? O despertador? A música do gás? Ao acordar, olhar o zap, depois uma passadinha pelo feed de notícias e correr para o banho, já atrasada. No banho, repassar a reunião da manhã, responder mentalmente a uns três e-mails, fazer a lista do supermercado e passar shampoo uma, duas ou três vezes, já não sei. Será que eu passei condicionador? Sabonete é melhor passar de novo, nunca se sabe. Não prestei atenção. Invejinha do cachorro, que se espreguiçou. Melhor fazer como o Marcelo e colocar: fazer cafuné nas crianças na agenda.
O café, o jornal, a viagem, o happy hour, o conserto do fogão, o reembolso médico e a net, que nunca funciona. O pai, a mãe, o cachorro, o filho, o chefe, o Temer, a crise.
A cada dia somos bombardeamos por sons, barulhos, ruídos. E nossa atenção é desviada, desafiada, cobrada, redobrada e ilimitadamente testada entre a lavandeira, a malhação e o cabeleireiro. Sem mencionar as compras, de tudo quanto é jeito: de comida, de música, de roupa, de apps, de sapatos.
A lista do to do nunca se encerra e com ela mais ruídos associados: o uber, o lanche, o banco, o cabeleireiro, a exaustão na chegada à festa.
Sem perceber, escolher um lençol bonito para cama não tem a menor graça, as férias são delegadas (qualquer coisa que eu não tenha que pensar nem decidir estão bem para mim) e a vida se resume a eliminar itens de uma lista sem fim de tarefas – a cada tarefa eliminada é obrigatório acrescentar mais duas. E escolher o sorvete de chocolate ou baunilha é um estorvo – muito embora os únicos impactados por esta escolha sejamos nós mesmos – ou aqueles a quem que se ama.
E aí de nós, pobres de nós, se ousarmos não fazer nada. É quase impossível, porque o pensamento será sobre: “o que estou deixando de fazer”. Dá para ficar em paz, quando nos esquecemos de fechar a janela, precisamos passar no sapateiro e decidir sobre o churrasco no sábado, e responder ao e-mail do João, da Joana, da Maria, do Pedro. E conhecer a India? Butão? Belém-do-Pará? Já viu passagem? E mergulhar? E correr 10k? Tem certeza de que não quer treinar para uma meia maratona?
O dolce fare niente morreu no dia em que a internet nasceu. Assim como o encantamento das pequenas reuniões em casa, o prazer de receber por receber, o desfrutar das passagens e paisagens.
E morreu também o silêncio. O silêncio exterior – e o interior. Aquele silêncio em que o não há mais tarefas, nem necessidades, exceto a de ouvir o coração. Aquela quietude que vem quando falamos com Deus, quando oramos concentrados.
Esquecemos que para ouvir, é preciso silenciar. E falamos. Falamos muito. Para resolver mais tarefas. Delegar mais funções. Orar entrou na lista das obrigações diárias. É quase como tomar banho – fazemos todos os dias, mas com o coração longe. Que parte do pai nosso eu estava mesmo?
E seguimos sem rumo – a lista dos afazeres não mostra um caminho, mostra apenas coisas que precisam ser feitas. Sem ouvir nosso coração. Sem ouvir Deus, sem ouvir nosso próximo, que resolve ligar bem no meio de um texto – logo agora que você conseguiu tirar cinco minutinhos para ler!
Luciana Esteves