O privilégio se sermos brasileiros. Como a nossa pluralidade nos ajuda a não sermos preconceituosos e extremistas, acolhendo aos estrangeiros para que sem sintam em casa e não num exílio. Como transformar a “Lei de Gerson”, depois de tudo que a gente tem vivido nesses dias tão conturbados? Gláucia fecha nossa edição com essa visão otimista e extremamente possível de ser alcançada.
O Brasil sempre foi caracterizado como um país formado pela etnia branca, representada pelos portugueses, pelos negros e indígenas. Mas ao nos olharmos e ao resgatarmos as origens da formação de todos nós, nos lembramos de que temos antepassados italianos, espanhóis, judeus e alemães, africanos, árabes, sírios, libaneses, japoneses, chineses e, mais recentemente, coreanos. Isto tudo, sem contar aqueles que não vieram em correntes migratórias; vieram sozinhos e por aqui ficaram.
A importância dos imigrantes na formação da nossa cultura é extraordinária, mas analistas da formação do nosso povo nunca acentuaram essa relevância porque boa parte dos estudos foi publicada durante os períodos de guerra, nos quais os italianos, japoneses e alemães eram nossos inimigos.
Muitas vezes, nos esquecemos de que este é um privilégio e tanto. Crescemos com amigos diferentes de nós: todo mundo ia experimentar a macarronada da avó do amigo italiano; árabes eram vizinhos de judeus e, muitas vezes, os filhos se apaixonavam; os filhos de japoneses, casados com brasileiras, eram as crianças mais lindas da rua; na escola, faziam a “festa das nações”, com várias barracas de comidas típicas e todo mundo provava de tudo, numa mistura de sons, sotaques, músicas e odores. Sempre foi tão simples e natural que a gente nem se dava conta da riqueza disto tudo!
Em uma terra onde todos são “imigrantes”, todos os estrangeiros são recebidos com bonomia. Adoramos os estrangeiros, porque, de certa forma, todos nos sentimos um pouco “refugiados” por aqui. Todo mundo veio de algum lugar e aqui se sente em casa. Isto é ser brasileiro.
Mas, e agora, como é que nos dividimos, de forma empobrecida e binária (amigo x inimigo), em “coxinhas” e “mortadelas”? Nós, que crescemos convivendo com diferenças muito mais profundas e nem notávamos, de repente, bloqueamos o amigo de décadas na rede social e nem sabemos mais como fazer se o encontrarmos na rua?
Acabamos de assistir às Olimpíadas. Durante os jogos, as pessoas se esqueceram das diferenças e todos voltaram a ser brasileiros, com muito orgulho. Mas, e depois?
Estamos no meio de uma das crises mais sérias pelas quais o nosso país já passou. Nem precisamos falar da gravidade do momento pelo qual o Brasil atravessa e os desafios que os próximos anos nos trarão.
Independentemente da posição político-partidária de cada um, que não cabe discutir aqui, temos que pensar naquilo que nos faz convergir para tentar encontrar um caminho comum e tirar algum aprendizado disto tudo.
Como resgatamos o senso plural da sociedade em que fomos criados? Afinal, o que aprendemos nisto tudo?
Aprendemos que temos, sim, responsabilidade por aquilo que ocorre no nosso país, porque nossos representantes refletem aquilo que somos. Não podemos esperar por políticos honestos e éticos se aplicamos a “Lei de Gerson” nas nossas vidas; não podemos querer que todos sejam honestos, enquanto pagamos meia-entrada no cinema com carteirinha “fria”, estacionamos o carro na vaga de idosos sem ter 60 anos ou compramos produtos de origem duvidosa na internet.
A mudança no nosso país começa pelo comportamento de cada um de nós: descumprir a lei não é legal; levar vantagem não é sinônimo de ser “esperto”. Prejudicar os outros é feio mesmo. Prejudicar os outros e levar “vantagem” não pode ser a lei do país que a gente quer viver; não pode ser a lei da nossa vida.
Levamos uma boa sacudidela! Todos, indistintamente, coxinhas e mortadelas! E não adianta querer achar culpados. Isto é função da Justiça. A nossa tarefa é nos unir para encontrar saídas. “Jeitinho” não é mais solução para problemas estruturais. Que tal começar pela revogação da Lei de Gerson?
Glaucia Savin